Como haveria de transformar mais um dia banal, num dia interessante, logo numa segunda-feira?...Foi indagando sobre o tema que ela atravessou a rua, em piloto automático, cumprimentou o senhor da banca de jornal, sem levantar os olhos, sequer confirmou se ele de fato lá estava, não estava.
Olhando para a time line do facebook, rolando a página compulsivamente para baixo, a procura do interruptor que lhe ligasse. Não, nada de novidade! - diz em voz alta. Pelo menos o ex-marido não postou mais fotos com a atual namorada - como se eu me importasse com os seus romances, tenho mais o que fazer! - conclui, com ar de deboche.
Caminhava, lendo, comendo, bebendo, pensando. Ah, como pensava! E de tanto que pensava, não pensava, presa às palavras da tua cabeça, às cobranças, carreira, salário, compromissos, desde à manicure ao relatório financeiro mensal para o CEO da empresa onde trabalhava. Um agenda interminável, atropelada, lhe esperava, impiedosa, às 8 da manhã.
Ausente de si mesma, poderia facilmente ser substituída por um robô - ninguém daria pela troca! - pensa angustiada, num rasgo de lucidez, num rasgo de presença. Mas o vício do cotidiano lhe prende novamente em sua teia. Nas próximas horas ela vai esquecer que existe, por pensar que existe assim, definida em palavras bonitas que vão todas parar no currículo, nenhuma nas poesias.
Sara, a secretária, aproveita todas as folgas do dia para escrever poesia - coitada! - condena ela, assinando os papéis que a moça de unhas vermelhas lhe entrega. Pensa que eu não sei que você faz as unhas aqui, no escritório? - indaga em pensamento, entregando os papéis. Pensa que não percebo quando liga para o namorado, suas risadinhas, seus arquejos? Pensa que não noto no teu pescoço as marcas de uma noite acalorada ? - amontoam-se as perguntas acusatórias em sua cabeça.
Quando Sara bate a porta atrás de si, ela está rubra de despeito, praticamente aliviada pela partida da secretária. Gira na cadeira e olha para fora do prédio, através da enorme janela, quase do tamanho da parede.
O mundo lá fora parece um formigueiro, um desfile de carros, táxis, caminhões, pessoas, guardas de trânsito, crianças...enquanto se perde em divagações, nota que a banca de jornal não está no seu lugar. Confusa e intrigada pergunta à Sara:
_ Sara, para onde foi a banca do seu Bento, aquela ali da esquina?
Sara faz silêncio por alguns segundos, até que por fim responde:
_ Senhora, há cerca de 6 meses eu coloquei um envelope na sua mesa, disse-me que o leria quando tivesse tempo. Depois, como vi que não o abriu, guardei-o na sua pasta de 'correspondência por ler'.
Desliga o telefone e dirige-se para o arquivo, retira a pasta e encontra um envelope amarelo com a inscrição 'Para a bela do edifício Bianco'.
Sorri - só pode ser este - conclui ao lembrar que Bento assim lhe tratava, sempre que parava para comprar revistas.
Abre o envelope, puxa a carta deixando cair junto um botão de rosa seco e desbotado.
'Minha bela,
Estou de partida, mas antes queria lhe dizer algumas palavras, que por excesso de cuidado, nunca disse. Em primeiro lugar, meu nome não é Bento (rs!) e sim, isso eu tentei lhe dizer diversas vezes, mas você assim insistia em me chamar. Meu nome é Jorge.
Um dia fui como você, com pressa de viver, com ânsia de subir as escadas, acumular moedas e títulos, propriedades, viagens, cartões de visitas....
Um dia porém, meu coração disse-me basta e parou de trabalhar compulsoriamente. Sem me pedir autorização, sem aviso prévio ou um simples post it. E eu fui obrigado a fazer algo que não fazia há 20 anos, parei.
E com muita tristeza vi que tinha construído um império, mas meus filhos não me amavam e minha mulher tolerava minha presença, estragada pelo meu mau hábito de compensar minha ausência com pertences. Eu tinha tudo e não tinha nada. E quando eu decidi não ter nada e ter tudo, ela tomou coragem e se separou de mim.
Mais uma vez eu agradeci o infortúnio, depois de sobreviver ao ataque cardíaco, aprendi a melhorar meu ângulo de visão sobre os acontecimentos. Primeiro, aprendi que não os controlo. Depois, aprendi que é uma perda de tempo tentar controlá-los. A criatividade divina é terrivelmente melhor que a nossa, deixe a vida te mostrar os caminhos por onde pode andar, vai-te surpreender minha querida.
Espero que minha carta não esteja te aborrecendo, que tenha lido até o final, que tenha perdido seu tempo comigo, pelo menos uma vez.
Então saberá, Fernanda Costa e Silva, que sei o teu nome, que nunca fui o dono da banca de jornal, que todos os dias eu simplesmente parava lá e te esperava. Que te ver passar, mesmo que apressada eram os minutos mais belos do dia. Que me inspirou a pintar muitas telas, sim, virei pintor ou na verdade sempre fui. Mas adormeci esta paixão para corresponder às expectativas da família. Que você, minha querida, foi muito amada, sonhada, poetizada. E que na única vez em que você me olhou nos olhos foi suficiente, me apaixonei, no mesmo instante.
Torço, de coração, para que não demore a perceber que eu comprei a banca, só para mudá-la de lugar, na esperança que fora do alcance dos raios solares que nela batia de manhã, você possa, sem se ofuscar, me olhar de novo nos olhos. Que sabor tão doce!
Te espero, nem que seja para um café. Sara tem o novo endereço da banca.
Não se permita secar, perder as tuas cores e o teu perfume, sem nunca ser tocada por um beija-flor.
Jorge Santarosa
Ela dobrou a carta, calmamente. Ficou em silêncio, pela primeira vez, sem pensamentos. Depois de pegar o endereço de Jorge com a Sara, saiu da sala. Ao pé da escada ouviu seu chefe perguntar em voz alta:
_Nanda, você terminou o relatório?
Ela não respondeu, começou a descer as escadas.
Ele, já aflito, pergunta novamente:
_ Onde você pensa que vai?!
Ela parou, olhou para trás, direto nos seus olhos, notou que eles eram mais bonitos do que se lembrava. Sorriu ternamente e disse em voz tranquila:
_ Não penso e é por isso que vou.