sábado, 23 de março de 2013
São Paulo, 1970
Já era de madrugada quando deixou os amigos de trabalho no bar, estava farta da mesma conversa de escritório e pôs-se a caminhar pelas ruas da zona velha da cidade, Funchal.
Sentia-se particularmente atraída por aquelas ruas estreitas, forradas de pedra, pelos prédios antigos e seus vários estilos arquitetônicos, que revelavam uma sumptuosidade esquecida. Aqueles grandes casarões foram cenários de muitas festas, recepções da alta burguesia, da côrte, da realeza…deliciava-se a imaginar quantas vidas teriam ali passado, quantas conversas, quantos sonhos, quantos amores…
O tempo roubou-lhes toda pompa, as paredes empalideceram, o telhado ruiu, e a erva entrou deselegantemente por onde jamais seria permitida.
Agora, os bares da moda invadiam a zona velha, revitalizando os imóveis, transformando-os em cafés, pubs, bistrôs e hostels. O cheiro ao álcool, à carne assada, à fritura, ao som do fado, do rock e da música eletrônica, devolveram vida àquelas ruas adormecidas. Mas ela, secretamente, prefere-as esquecidas e adentra cada vez mais pelos recantos sombrios e melancólicos, ainda que as pedras soltas estraguem-na o salto fino da bota e o copo fique cada vez mais vazio. Lamenta não ter trazido a garrafa.
Apóia-se numa parede para verificar o salto, quando ouve um burburinho de pessoas a conviver, levanta os olhos e avista um café na esquina, ouve-se em francês, italiano, inglês e português.
Ela não evita aproximar-se, é demasiado sedutor, aquele aroma adocicado do café, aquelas vozes, aquele tilintar da arrumação das chávenas de chá, as risadas contidas…
Pára diante das janelas, são duas, com peitoral florido e cortinas delicadamente rendadas, entreabertas. Lá dentro, o serviço elegante e aprumado dos empregados de mesa, servem pequenos jantares, cafés e bebidas.
Nota que no andar de cima também há pessoas, as mulheres aparecem e desaparecem das janelas, aos risos e brincadeiras, num jogo de sedução e encanto.
De repente, a porta principal se abre e três jovens mulheres saem à rua calmamente. Como amante da moda, ela estranha, mas logo identifica os estilos de cada uma daquelas belíssimas senhoras. Uma é certamente ‘Paris, 1950’, num vestido verde-claro, sedutor e feminino, saia na altura dos joelhos, muito rodada e cintura marcada, na mão enluvada uma belíssima piteira e um cigarro aceso, cabelos presos delicadamente com uma jóia em destaque. A outra é ‘Londres, 1960’, vestido curtíssimo, corte geométrico e estampa psicodélica em tons vibrantes, cabelos sedosos e soltos na altura dos ombros. A pintura forte dos olhos destacam-nos, sugerindo poder e liberdade enquanto a boca, pálida e discreta, revela jovialidade e pureza. A terceira é ‘Roma, 1980’, saia cinza drapeada, meias collants pretas, botas de cano médio, um terninho prata, fechado com um único botão, sem camisa por baixo, a boca muito vermelha e o cabelo preso, escondido num chapéu pequeno, mas muito brilhante. Elas conversam, sorriam e fumam, olham-na com interesse, num convite silencioso para o convívio.
Num reflexo involuntário olha para si mesma e censura-se por não ter vestido roupa melhor, usa calça jeans skinny, bota de cano alto, camiseta preta e jaqueta, muitos colares e pulseiras, cabelo solto e desalinhado, não se sentia mulherzinha como elas. Mas está inebriada com aquele barulho bom, aquele perfume da noite entorpece-lhe os sentidos, aquelas senhoras confunde-lhe a razão.
Roma foi a primeira a entrar, seguiu-a Londres e Paris, que parou diante da porta, olhou para ela sorrindo e com um gesto de cabeça, convidou-a entrar.
Ela seguiu-a, segurou a maçaneta da porta e pôs o primeiro pé na soleira da porta, quando ouviu uma voz masculina dizer:
_São Paulo não quer entrar?
Percebeu imediatamente que falavam dela, sentiu uma corrente de excitação estremecer-lhe o corpo, que a fez escapar a maçaneta da porta, que bateu com força.
O pó que jazia nas entranhas esculpidas na porta de madeira, fez crescer uma nuvenzinha que ofuscou-lhe a visão. Deu alguns passos para trás para fugir da aflição.
Piscando, abriu os olhos com dificuldade…o Café, as senhoras, o barulho, o perfume, tudo havia desaparecido. As lágrimas que brotaram nos seus olhos limparam os últimos vestígios da poeira.
O prédio estava em ruínas, abandonado, sem vida, ergueu os olhos em direção ao andar superior, numa última esperança de encontrar vida, mas o que viu foram janelas caídas e pequenos raios do sol que perfuravam as frestas do telhado degradado. Nunca se viu tão triste por ver o sol nascer.
Arrependeu-se de não ter entrado a tempo...
Eliane Barreto
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Sendo este o primeiro sabemos de antemão que muitos mais virão. Sendo este o primeiro, tão intenso e cativante, Ficamos nas ruas de teu mundo à procura do segundo. Sendo este o primeiro nos envolve, nos remete, nos prende e nos diverte. De pé, aplaudo, faço vênias, atiro rosas coloridas, vivencio e em alegria não contida me rio.
ResponderEliminarEstou radiante de alegria, obrigada meu querido amigo!
EliminarPROFUNDO PARABÉNS MINHA MEIGA MOÇA!!!
ResponderEliminarUm conto muito interessante, Eliane! Parabéns! :)
ResponderEliminarE quando não chegamos a tempo da primeira vez, podemos sempre tentar de novo! :)
Beijo
Gostei...Além de um livro de poesias vou comprar um de contos!
ResponderEliminarParabéns!!
Eliane,
ResponderEliminarSei conto me lembrou uma passagem do livro de Herman Hesse "O Lobo da estepe" quando ele para diante daquela porta... Adorei! Arrependimentos sempre existem na nossa caminhada, alguns confirmam-se mais à frente, mas outros às vezes não. O tempo sempre confirma essa dúvida em nós. Parabéns pelo conto, espero que seja o primeiro de muitos! Gr. Bj.!
Já li muitas vezes e a cada uma gosto de uma coisa, ou percebo algo novo. Gostei de tudo, mas me pareceu um exercício contido; há muita riqueza de dados e de contexto, você só brincou conosco, e ficou um gostinho de quero mais.
ResponderEliminarGostei da surpresa e do desfecho, importante pra manter o interesse na estória. Mas fala sério, você nem arquitetou, você visualizou, porque a descrição me levou pro aquele instante. Parabéns!