segunda-feira, 25 de março de 2013

Lisboa



  
      Ela está em pé, tentando encontrar suas peças de roupas jogadas pelo chão do quarto do hotel. Descuidada, tropeça numa poltrona, solta um palavrão...
      Ele está nu sobre a cama, o dorso recostado nas almofadas da cabeceira e o ar divertido a apreciar a falta de jeito dela.
      _Como uma mulher tão bela pode ser tão indelicada? - perguntou, dando-lhe um sorriso sedutor.
      _Vai-te foder! - responde, tirando fios dourados que lhe caem desalinhados sobre o rosto.
      Ele ri fartamente.

      Em pouco tempo ganham a rua.
      _Te encontro às 21h aqui mesmo no hotel, não te atrases, querida! - afirma em tom autoritário, como de costume.
      Despedem-se diante do hotel com um beijo breve e tomam direções opostas da Rua das Amoreiras.
      Ela atravessa a rua, apressada, retira o telemóvel da bolsa e liga para o chefe. Enquanto aguarda ser atendida, pondera dizer-lhe a verdade, que esteve numa cama de hotel com o homem a quem deveria investigar, o criminoso mais procurado do país. Soube sempre que a operação era delicada, que deveria se aproximar o suficiente para recolher provas contundentes, que a sua bela aparência deveria ser um leve chamariz para atrai-lo...
      Um forte ruído interrompe seus pensamentos, desliga a chamada, corre na direção da azáfama. 
      Abre passagem entre a multidão apresentado sua identidade profissional, agente da autoridade policial. Aproxima-se, é ele, caído ao chão, acabara de ser atropelado. O socorro é imediato, surge uma ambulância em poucos segundos, ele é posto numa maca.
      _Meu querido, vou ter contigo ao hospital, preciso apenas falar com o meu patrão, mas chego lá num instante - diz, tranquilizando-o. Vira-se para o socorrista e dá-lhe instruções sobre a internação, este lhe devolve um sorriso desdenhoso.
      Caminha rapidamente em direção à base, um Café, localizado a poucos metros dali, intrigada com aquele sorriso enigmático do socorrista.

      Na ambulância, ele se levanta da maca, senta-se.
      _Filha duma puta, ordinária, era mesmo da polícia! - brada aos pulmões, mau humorado.
      _Eu disse que lhe provaria, tinha certeza e ela caiu feito uma patinha na minha cilada - diz o falso socorrista. - E agora, o que pretende fazer?
      _Anotou o nome dela? - pergunta ele, recebendo do comparsa uma folha de papel dobrado.
      Vira-se para o motorista da ambulância e ordena que o leve ao Old Bar.

      Sentados numa mesa do bar, sombrio e vazio para aquela hora da manhã, são atendidos pelo gerente.
      _O mesmo de sempre, senhores?
      _Hoje não, precisamos de um blackberry - informa, enquanto acende um cigarro.
      O gerente consente com um gesto da cabeça e se afasta. Momentos depois, surge um jovem alinhado em terno preto, rosto magro e pálido, olhar inexpressivo.
      _Meu gerente informou-me que desejam um blackberry? - interpele calmamente. - Para quando seria?
      _Esta noite, por volta das 21h, no Dom Pedro Palace! - responde sem desviar o olhar do empregado em pé a sua frente, enquanto empurra na sua direção, sobre a mesa, o pedaço de papel dobrado.
      _Com quantas pedras de gelo, senhor? - pergunta, pegando o papel e guardando-o no bolso do paletó.
      Ele pensa um instante, solta uma baforada do cigarro, finalmente diz:
      _Para ter a certeza que a bebida vai ficar fria, use o covert  todo...



Eliane Barreto

Singular


Eliane Barreto

sábado, 23 de março de 2013

São Paulo, 1970

     
                                                           
        Já era de madrugada quando deixou os amigos de trabalho no bar, estava farta da mesma conversa de escritório e pôs-se a caminhar pelas ruas da zona velha da cidade, Funchal.
        Sentia-se particularmente atraída por aquelas ruas estreitas, forradas de pedra, pelos prédios antigos e seus vários estilos arquitetônicos, que revelavam uma sumptuosidade esquecida. Aqueles grandes casarões foram cenários de muitas festas, recepções da alta burguesia, da côrte, da realeza…deliciava-se a imaginar quantas vidas teriam ali passado, quantas conversas, quantos sonhos, quantos amores…
       O tempo roubou-lhes toda pompa, as paredes empalideceram, o telhado ruiu, e a erva entrou deselegantemente por onde jamais seria permitida.
       Agora, os bares da moda invadiam a zona velha, revitalizando os imóveis, transformando-os em cafés, pubs, bistrôs e hostels. O cheiro ao álcool, à carne assada, à fritura, ao som do fado, do rock e da música eletrônica, devolveram vida àquelas ruas adormecidas. Mas ela, secretamente, prefere-as esquecidas e adentra cada vez mais pelos recantos sombrios e melancólicos, ainda que as pedras soltas estraguem-na o salto fino da bota e o copo fique cada vez mais vazio. Lamenta não ter trazido a garrafa.
       Apóia-se numa parede para verificar o salto, quando ouve um burburinho de pessoas a conviver, levanta os olhos e avista um café na esquina, ouve-se em francês, italiano, inglês e português.
       Ela não evita aproximar-se, é demasiado sedutor, aquele aroma adocicado do café, aquelas vozes, aquele tilintar da arrumação das chávenas de chá, as risadas contidas…
Pára diante das janelas, são duas, com peitoral florido e cortinas delicadamente rendadas, entreabertas. Lá dentro, o serviço elegante e aprumado dos empregados de mesa, servem pequenos jantares, cafés e bebidas.
       Nota que no andar de cima também há pessoas, as mulheres aparecem e desaparecem das janelas, aos risos e brincadeiras, num jogo de sedução e encanto.
       De repente, a porta principal se abre e três jovens mulheres saem à rua calmamente. Como amante da moda, ela estranha, mas logo identifica os estilos de cada uma daquelas belíssimas senhoras. Uma é certamente ‘Paris, 1950’, num vestido verde-claro, sedutor e feminino, saia na altura dos joelhos, muito rodada e cintura marcada, na mão enluvada uma belíssima piteira e um cigarro aceso, cabelos
presos delicadamente com uma jóia em destaque. A outra é ‘Londres, 1960’, vestido curtíssimo, corte geométrico e estampa psicodélica em tons vibrantes, cabelos sedosos e soltos na altura dos ombros. A pintura forte dos olhos destacam-nos, sugerindo poder e liberdade enquanto a boca, pálida e discreta, revela jovialidade e pureza. A terceira é ‘Roma, 1980’, saia cinza drapeada, meias collants pretas, botas de cano médio, um terninho prata, fechado com um único botão, sem camisa por baixo, a boca muito vermelha e o cabelo preso, escondido num chapéu pequeno, mas muito brilhante. Elas conversam, sorriam e fumam, olham-na com interesse, num convite silencioso para o convívio.
        Num reflexo involuntário olha para si mesma e censura-se por não ter vestido roupa melhor, usa calça jeans skinny, bota de cano alto, camiseta preta e jaqueta, muitos colares e pulseiras, cabelo solto e desalinhado, não se sentia mulherzinha como elas. Mas está inebriada com aquele barulho bom, aquele perfume da noite entorpece-lhe os sentidos, aquelas senhoras confunde-lhe a razão.
       Roma foi a primeira a entrar, seguiu-a Londres e Paris, que parou diante da porta, olhou para ela sorrindo e com um gesto de cabeça, convidou-a entrar.
       Ela seguiu-a, segurou a maçaneta da porta e pôs o primeiro pé na soleira da porta, quando ouviu uma voz masculina dizer:
       _São Paulo não quer entrar?
       Percebeu imediatamente que falavam dela, sentiu uma corrente de excitação estremecer-lhe o corpo, que a fez escapar a maçaneta da porta, que bateu com força.
       O pó que jazia nas entranhas esculpidas na porta de madeira, fez crescer uma nuvenzinha que ofuscou-lhe a visão. Deu alguns passos para trás para fugir da aflição.
       Piscando, abriu os olhos com dificuldade…o Café, as senhoras, o barulho, o perfume, tudo havia desaparecido. As lágrimas que brotaram nos seus olhos limparam os últimos vestígios da poeira.
       O prédio estava em ruínas, abandonado, sem vida, ergueu os olhos em direção ao andar superior, numa última esperança de encontrar vida, mas o que viu foram janelas caídas e pequenos raios do sol que perfuravam as frestas do telhado degradado.
       
Nunca se viu tão triste por ver o sol nascer.
       Arrependeu-se de não ter entrado a tempo...



Eliane Barreto

Ruínas